O Dilema do Final

Foi durante um banho que veio a ideia, enquanto a água lambia a pele de cima a baixo, e as mãos, uma munida de sabonete meio gasto e a outra nua a escorregar na espuma, desenhavam no corpo uma sintonia aparentemente caótica. Aparentemente.
Não se apressou. Deixou que a ideia conversasse um monólogo assistido ali dentro de sua caixa craniana. Visualizava as frases, repensava concordâncias, ia e voltava desordenadamente, tentando casar as palavras de forma que mais se deixasse confortável.
Enquanto se secava, lixando o couro úmido com uma toalha amaciada, pensava "essa sim é uma ideia. Devo pôr no papel, ou numa tela. Devo escrever! Tirar da mente, trazer ao mundo. Devo parir".
Jogou a toalha na cama, estendeu-se apressadmente, enfiou-se numa roupa velha de ficar em casa, sacudiu os cabelos, alcançou o celular e jogou-se na velha cadeira de balanço.
As palavras pulavam da mente para os dedos e dali para a tela do aparelho. Às vezes, uma ou outra, das mais estrambólicas, fazia escala nas cordas vocais.
- Es-tram-bó-li-ca. - recitava tentando manter o foco.
O texto fluía, se escrevia por si só, quase um adolescente que se julga independente, mas ainda é cativo dos cuidados paternos e maternos. Sentia gosto de ver, seu filho, ou filha, crescia a olhos vistos. Que alegria.
Mas assim como a ideia lhe veio, estancou. Pai e mãe não deveriam ver o fim de um filho. Que tristeza desgraçada! Também assim se sentiu quando a mente calou.
Os dedos tremelicavam suspensos no ar, os olhos corriam nervosos para cima e para baixo nas palavras já postas na tela, "perdi o fio. Quede?". Um leve desespero abravaçava-lhe as costas. Nada demais, leve, mas ainda um desespero.
Foi até a geladeira e tomou três grandes goles de água gelada, no bico da garrafa. Olhou as prateleiras e o que se empoleirada nelas: cenouras, couve, maçãs, doce de banana, panelas com restos de comida do almoço, esse é de ontem ou de hoje? Tanto faz.
Respirava impaciente, passeou nervosamente de volta à cadeira. Largou-se, mãos ao rosto, celular no bolso. Tirou-o. Destravou a tela e encarou as palavras que pareciam rir de sua cara de tacho.
- Sempre assim! Sempre! Tenho uma ideia, me ponho a escrever, quando chega o momento derradeiro, lá se vão as ideias. Malditas musas brejeiras! Largam lépidas inspirações e depois as arrancam sob gargalhadas zombeteiras. Que que há?
Ficou minutos a sentir a brisa da noite embalando seu corpo, até que decidiu.
- É isto! Se não encontro melhor final, será assim. Paro agora de escrever esse texto. Pronto!

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