Estarei Esperando
Com os olhos azuis arregalados e marejados, Geovane não conseguia entender o que estava acontecendo.
Como podia Naomi, aquela oriental franzina, o erguer pelo pescoço com apenas uma mão como se não nada fosse? E porquê? Eles haviam casado a poucas horas e chegado no hotel a poucos minutos. Ela parecia tão feliz no segundo anterior ao acesso de raiva e loucura.
Ele tentou reagir, revidar, sair daquele golpe, mas seus braços pendiam moles junto ao corpo e não respondiam à usa vontade. Uma lágrima correu por seu rosto, embrenhando por sua barba ruiva.
Um sorriso se desenhou no rosto feminino, em contraste com a fúria em seus olhos, a deixando com uma feição macabra. Então Naomi começou a falar.
Era sua voz, mas as palavras não pereciam ser pronunciadas por ela. Era como se outra pessoa falasse por sua boca.
Você deve estar se perguntando o que está acontecendo, o motivo disso. Sim, você já questionou isso tantas outras vezes. Na verdade, todas as vezes, mas eu já esperava por isso. Então vou te explicar.
O Ano era 1154 e eu era um jovem samurai, ou hanshi. Você tinha terras na região de Shimotsuke no Japão e eu, assim como meu pai, jurei lealdade e proteção ao seu han. Você era meu senhor.
Eu era casado. Minha pequena e linda Miko. Eu a amava. Ela estava grávida do nosso primeiro filho quando fui mandado numa missão por você. Eu deveria acompanhar e proteger uma carga que iria para Hitashi. Foram quatro longos dias de viagem, pensando na minha Miko sozinha em casa.
Quando retornei, encontrei Miko jogada ao chão, nua, suja, torturada e morta. Eu não sabia o que fazer, então corri até você, meu senhor. Mas você me entregou à polícia, dizendo que eu tinha matado minha própria esposa. Que eu havia matado a minha Miko!
Um dia antes da minha execução eu consegui fugir, passei uma última vez na minha casa, peguei minhas roupas e armas e o procurei. Falei que não tinha matado Miko, que já a havia encontrado morta. Mas agora não havia mais motivo para viver e eu queria praticar o seppuku, para, pelo menos, morrer com honra.
O tempo era curto até que me encontrassem, então não haveria como preparar todo o ritual. Você aceitou me ajudar sendo o kaishakunin e nós fomos até a borda da mata, perto do riacho que cortava suas terras.
Chegando lá, eu estiquei um pano branco no chão, retirei minha katana e a entreguei a ti, que ficou à minha esquerda. Retirei a parte superior da minha roupa, ajoelhando-me sobre a borda do pano, me banhei com as águas do riacho e empunhei trêmulo meu tantō, respirei fundo e enfiei em um só golpe a curta lâmina do lado esquerdo do meu ventre.
Nesse momento, Naomi enfiou raivosamente a lâmina de uma faca que segurava em sua mão direita no ventre de Geovane, que sentiu o metal frio entrar queimando sua pele e carne. Um gemido abafado fugiu de sua boca e seu sangue escorreu pela mão de Naomi, deixando a luva nupcial tingida de rubro.
Meus olhos ficaram turvos e eu sentia um frio se abater sobre mim. Mas, com os olhos voltados para o céu e um grito travado na garganta, puxei a lâmina até o extremo direito de meu ventre e senti um reboliço na minha barriga. Olhei para baixo num instinto maldito e vi minha vísceras saindo de meu corpo, penduradas. Quase desfaleci, mas num último movimento desesperado ainda puxei a lâmina do tantō até a sentir encostar e arranhar minha costela.
Foi nesse momento que olhei, suado e fraco, para sua imagem embaçada. Devo ter demorado um segundo, mas para mim pareceu um ano inteiro, para perceber que você estava sorrindo. Não entendi, mas baixei a cabeça, esperando o misericordioso kaishaku, a decapitação… que nunca veio.
Você andou até a minha frente, ajoelhou-se rindo e levantou meu queixo para que eu conseguisse olhar-te nos olhos. Você se gargalhava enquanto falava “Foi eu! Seu imbecil, foi eu! Eu matei a sua Miko. Eu o mandei naquela missão para te tirar daqui. Eu sempre quis ter aquele corpinho da Miko pra mim, a possuir. Mas ela nunca me aceitou, então fiz do meu jeito. Te tirei de perto, a possuí à força e então a matei. E agora, você vai morrer aqui, ao relento, como um tolo!”
Antes que você se levantasse, eu falei uma coisa que você não entendeu, pois eu estava muito fraco. Mas você aproximou seu rosto de minha boca e eu repeti com toda a força que consegui reunir “Eu voltarei!”. Você gargalhou, se levantou, jogou minha katana no riacho, chutou minhas vísceras e foi embora sem nem olhar para trás. Parou alguns passos à frente, esfregou um pouco de terra no calçado sujo com o meu sangue e continuou andando.
Quando você sumiu da minha vista, eu caí para frente e apaguei, mas demorei para morrer. Quando as raposas vieram devorar meus órgão, eu ainda sentia. Quando os malditos corvos começaram a bicar minha carne, eu ainda estava lá, mas não conseguia nem sequer gemer. Eu senti tudo, até que a morte me abraçou.
Naquela noite eu acordei com frio. Me levantei com dificuldade e olhei meu corpo sendo devorado por pequenos animais famintos. Olhei para baixo e minhas vísceras expostas me acompanhavam em meu novo corpo, do outro lado. Olhei ao meu redor e vi um mundo diferente, cheio de criaturas invisíveis para quem ainda está vivo, mas não senti medo. Minha ira era tão grande que eu só via seu rosto na minha frente, a gargalhar da minha desgraça.
Fui em direção à sua casa e percebi que agora minha locomoção era diferente. Eu podia voar, andar muito mais rápido, quase na velocidade do meu pensamento. Cheguei à sua janela num piscar de olhos.
Sem perceber, estava dentro do seu quarto. Na sua frente! Você reclamou de um calafrio repentino com sua esposa, mas ela disse não ter percebido. Depois de muito tempo, muitas vidas, entendi que era minha presença que provocara tal reação.
Tentei te esganar, mas atravessei sua carne como se fumaça fosse. Não sabia o que fazer, mas sabia que precisava te matar. Foi então que olhei para sua esposa e, nem sei o motivo, investi sobre ela.
Sem saber exatamente como, eu a controlei, o corpo dela fazia tudo que eu quisesse! Quando percebi que estava usando seu corpo, investi sobre você, que não entendia o que estava acontecendo. Exatamente como agora!
Eu apanhei uma wakizashi que você ostentava na parede de seu quarto e, usando as mão de sua esposa o apunhalei no ventre, olhei no fundo dos seus olhos e falei usando a voz da sua amada, “Eu disse que voltaria!”.
Você deve ter se lembrado do que eu disse antes de morrer, pois seus olhos confusos passaram a expressar um medo sem tamanho.
Puxei a lâmina até o outro lado de sua barriga e deixei-te agonizando com a vísceras à mostra, tal qual eu horas mais cedo.
Fui embora em seguida, mas nada aliviou minha dor matar-te apenas uma vez. Eu ainda ardia em fúria e até mesmo o animais se assustavam quando meu espírito passava próximo.
Espíritos de luz vieram me buscar, queriam me ajudar, mas eu me recusei. Não queria sujar um lugar limpo e sagrado com minha ira. Eu precisava fazer algo. Foi então que percebi que sua alma havia sido recolhida e, mais cedo ou mais tarde, voltaria.
Rodei o mundo várias e várias vezes, vasculhando cada canto, anos a fios, quando, quarenta e sete anos depois, te encontrei na Inglaterra, com dezenove anos de idade, filho de um senhor de terra e praticando suas maldades com os pobres camponeses. Matei-te novamente, usando o corpo de sua irmã e uma faca que mal cortava um pedaço de pão. Você gritou bastante quando a lâmina te atravessou a pele do ventre.
E assim sigo sua alma, matando-te sempre que o encontro. Sua alma não é difícil de ser encontrada. O fedor dela é forte e característico, se sente a carniça a quilômetros de distância. Eu sempre soube que era você quando te encontrei.
Como quando eras um policial corrupto no Brasil, ou quando eras um serial killer no Estados Unidos.
Ainda teve aquela vez que você era um soldado nazista na segunda guerra, você estuprava as meninas judias antes de mandá-las para a câmara de gás. Deve ter sido particularmente dolorido para você ter seu pênis arrancado com uma mordida antes de ser desviscerado por aquela moça tão frágil.
Agora, porém, nossa história foi diferente. Achei-te no dia do teu nascimento, em Florença. Acompanhei toda a tua infância e seus primeiros atos de maldade, quando surrava os cães ou cegava gatos da vizinhança por diversão.
Sempre que sentias aquele calafrio, era eu ao seu lado, apenas nutrindo meu desejo de vingança a cada passo que você dava. Eu vi toda a sua história com Naomi, e isso me lembrou Miko, o que me ferveu ainda mais o sangue.
Então hoje, chegou sua hora, outra vez, seu mafioso maldito! Vais morrer com as tripas ao chão, assim como eu morri, assim como tenho te matado durante todas essas suas malditas vidas.
A pobre Naomi vai pagar por tua morte, sim. Mas as mensagens trocadas entre você e sua amante Lisa vão ajudá-la a dizer que estava cega, que não sabia o que estava fazendo, os psiquiatras vão dizer que ela agiu por impulso e forte emoção quando descobriu sua traição.
Ah, sua alma voltará, você irá encarnar em qualquer outro canto do mundo. Não se preocupe. Estarei esperando!
***
Naomi acordou de um estranho transe horas mais tarde sentindo um cheiro nauseabundo. Gritou em desespero ao ver o corpo de seu amado caído ao chão, com as vísceras espalhadas sobre o elegante carpete do hotel de Paris.
Ao perceber a faca em sua mão e o sangue que se espalhava sobre sua mão, braço e vestido, perdeu a cabeça e se jogou pela janela, morrendo ao chocar seu rosto de porcelana contra a calçada dura e fria quatorze andares abaixo, no chão iluminado pela luz amarela da mais famosa torre do mundo.
Comentários
Postar um comentário